domingo, 31 de maio de 2009

O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL E A LEI nº 11.719/2008 *

A lei 11719/2008 inovou no ordenamento jurídico pátrio ao introduzir o novel parágrafo 2º ao art. 399 do CPP, verbis:

"§ 2o O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença."


Com efeito, torna-se lícito afirmar que a partir da entrada em vigor da lei 11719/2008, aplicar-se-á ao processo penal o princípio da identidade física do juiz.

Tal tese já era abarcada de lege ferenda por alguns doutrinadores, mas não encontrava amparo na maioria da jurisprudência.

Desse modo, embora o princípio da identidade física do juiz já tivesse vigência no Direito Processual Civil, os Tribunais Superiores não vinham reconhecendo a sua adoção no processo penal, senão vejamos a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida pouco antes do advento da lei 11719/2008:


"CONSTITUCIONAL – PENAL – PROCESSO PENAL – HABEAS CORPUS – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – RÉU DOMICILIADO E RESIDENTE NA ITÁLIA – INTERROGATÓRIO MEDIANTE CARTA ROGATÓRIA – AUSÊNCIA DE PREVISÃO ESPECÍFICA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL –INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ – GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS – ACORDO FIRMADO ENTRE BRASIL E ITÁLIA PARA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA E ASSISTÊNCIA MÚTUA EM MATÉRIA PENAL – DECRETO 862/1993 - ORDEM CONCEDIDA.

1. Encontrando-se o agente em País estrangeiro, mas em local sabido, sua citação deve ocorrer via carta rogatória. Inteligência do artigo 368 do Código de Processo Penal.

2. É possível a realização do interrogatório do agente em País estrangeiro, desde que resguardadas todas as garantias legais e constitucionais atinentes à espécie, notadamente quando há acordo de cooperação judiciária e assistência mútua em matéria penal devidamente firmado pelo Brasil, promulgado no ordenamento interno via Decreto.

3. Ademais, o princípio da identidade física do juiz não é aplicável ao processo penal.(grifo nosso)

4. Ordem concedida." [01]

A jurisprudência do STF manifestou-se no mesmo sentido, verbis:

"Habeas corpus". - A nulidade relativa da não-observância da formalidade prevista no artigo 514 do Código de Processo Penal, sendo sanada se não alegada no momento processual oportuno, tem sido reconhecida por ambas as Turmas desta Corte. Precedentes. - Improcedência das alegações de cerceamento de defesa e de "mutatio libelli". - O processo penal não contempla o princípio da identidade física do Juiz.(grifo nosso) - Os oficiais de registro e notário são servidores públicos em sentido lato (RE 178.236, Plenário). - Os emolumentos judiciais são tributos da espécie taxa. Precedentes do S.T.F. Por isso são abarcados pela expressão "tributo" contida no artigo 316, § 1º, do Código Penal, na redação dada pela Lei 8.137/90. "Habeas corpus" indeferido. [02]

Com a reforma processual penal, a tendência é que o STJ e o STF modifiquem o entendimento que era sedimentado, passando a incorporar o axioma também ao processo criminal.

Por oportuno, cumpre destacar que diante da ausência de norma no Código de Processo Penal que regulamente o princípio da identidade física do juiz, há que se aplicar subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil. Nesse sentido, merece transcrição o disposto no art. 132 da Lei de Ritos Civis:

"Art. 132- O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.

Parágrafo único - Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas."

Constata-se, assim, que o juiz que presidiu a instrução é aquele que concluiu a audiência criminal. Este último Magistrado é aquele que, em tese, interrogou o acusado. O juiz que encerra a instrução só não julgará a causa quando estiver afastado por qualquer motivo. Portanto, somente excepcionalmente permitir-se-á que juiz diverso daquele que encerrou a audiência de instrução prolate sentença.

Outrossim, diante da estreita relação existente entre os princípios da identidade física do juiz e da oralidade, deverão os Tribunais adotar o artigo 399, parágrafo 2º, do CPP, subsidiariamente, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Tal tese já era defendida antes mesmo do advento da Lei 11719/2008, como se extrai do seguinte entendimento do Defensor Público Leandro de Oliveira Barbosa:

"Em linha de conclusão, de lege lata, o legislador infraconstitucional de 1995, introduziu a identidade física do juiz no comando normativo do art. 81 da Lei 9099, na medida em que vinculou o juiz para a prolação da sentença em audiência una, onde se realizam todos os atos instrutórios em sua presença (...)" [03]

Ademais, vale destacar que caso o princípio da identidade física do juiz não seja observado em um processo criminal, o vício que surgirá deverá ser considerado como de nulidade relativa. No campo das nulidades, não há que ser aplicar subsidiariamente normas do Código de Processo Civil, vez que o CPP possui regulamentação própria, a saber:

"Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente."

Portanto, sempre que a parte prejudicada constatar que a sentença foi proferida por juízo diverso daquele que encerrou a instrução, ocorrerá hipótese de nulidade relativa. Esta nulidade poderá ser sanada por meio de embargos de declaração ou através de preliminar de recurso de apelação. Em não sendo impugnada a citada decisão, entendemos que a matéria restará preclusa.

Por fim, faz-se mister analisar a possibilidade do réu ser interrogado por meio de Carta Precatória, após o advento da Lei 11719/2008. A tese majoritária antes da alteração do CPP sustentava que tal ato de cooperação não poderia ser considerado eivado de vício, sob o argumento precípuo de que o CPP não acolhia o princípio da identidade física do juiz. Por todos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

"PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2º, I, II E V, DO CÓDIGO PENAL. PRISÃO EM FLAGRANTE. EXCESSO DE PRAZO. RELAXAMENTO. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. NULIDADE DO INTERROGATÓRIO.

I - Resta superada, em princípio, a alegação de excesso de prazo, se o paciente foi colocado em liberdade, em razão da concessão de writ pelo e. Tribunal a quo (Precedentes).

II - A competência firmar-se-á pela prevenção toda vez que, "concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a esse relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa."

III - Não há nulidade no fato de se realizar o interrogatório do paciente, preso em outra comarca, mediante carta precatória, posto que não vigora no processo penal brasileiro o princípio da identidade física do juiz, assim como não há imposição legal quanto ao deslocamento de réu preso para o fim de ser interrogado (Precedentes).

Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido." [04]

Acontece que agora está positivado o princípio da identidade física do juiz e da concentração das audiências criminais em somente um ato solene. Questiona-se se o entendimento do STJ será mantido ou não. Pensamos que a hipótese merece aplicações diversas, dependendo se o Réu está preso ou não.

1ª Hipótese) Réu Preso

Com a modificação do art. 399, parágrafo 1º, do CPP pela Lei 11719/2008, retomou-se a requisição do Réu para o comparecimento a interrogatório:

"§ 1o O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação."

Outrossim, após a Lei 11719/2008, o interrogatório passou a ser tratado como verdadeiro meio de defesa, eis que foi deslocado para o final da instrução processual. Por oportuno, vale transcrever a nova redação do art. 400 do CPP (dada pela Lei 11719/2008), que disciplina a concentração das audiências no rito ordinário, verbis:

"Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado."

Conclui-se, assim, que quando o Réu estiver preso o Interrogatório deverá ser feito pelo juiz competente (de origem), sem a expedição de Carta Precatória, sob pena de afronta à nova sistemática introduzida pela Lei 11719/2008. Esse entendimento reconhece no interrogatório o exercício do direito constitucional à ampla defesa e contraditório, verbis:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."

2ª Hipótese) Réu Solto

Pensamos que a solução deve ser outra nos casos que envolvem Réu Solto. A citação do Réu Solto e a intimação para que compareça à audiência podem ser feitas por meio de Carta Precatória. Entretanto, a oitiva do acusado solto, no juízo deprecado, depende de sua anuência, eis que, a rigor, o interrogatório deve ser realizado seguindo o princípio da identidade física do juiz.

Na cauda de tais considerações, vale aduzir que a doutrina entende que o comparecimento físico do Réu ao interrogatório é dispensável quando o mesmo está solto, sendo suficiente sua intimação para que possa produzir auto defesa e participar do processo. Os fundamentos dessa tese jurídica são os de que o réu pode preferir ser revel no processo penal e também quedar-se em silêncio na audiência de interrogatório.

Constata-se, assim, que o Réu Solto, no exercício do seu direito de defesa, pode requerer a sua oitiva por meio de Carta Precatória, ou, em não adotando tal providencia, terá a faculdade de comparecer ao juízo de origem para prestar depoimento. No caso de ser necessário o fracionamento da audiência de instrução e julgamento, não haverá qualquer nulidade desde que seja seguida a ordem legal para a produção da prova.



CONCLUSÕES

Face ao exposto, tecemos as seguintes impressões relativas ao princípio da identidade física do juiz no Direito Processual Penal, após o advento da Lei 11719/2008:

1) Antes do surgimento do art. 399, parágrafo 2º, do CPP (Lei 11719/2008), o STJ e o STF não aplicavam o princípio da identidade física do juiz, sendo crível que futuramente passem a adotá-lo;

2) O artigo 132 do CPC aplica-se subsidiariamente ao Direito Processual Penal;

3) Mormente em virtude do princípio da oralidade, deverá prevalecer o entendimento no sentido de que o princípio da identidade física do juiz também se aplica aos Juizados Especiais Criminais;

4) Diante da redação do art. 567 do CPP, o descumprimento do princípio da identidade física do juiz ocasiona nulidade relativa, sanável no primeiro momento em que for verificada pela parte prejudicada;

5) Adotando-se uma interpretação sistemática da Lei 11719/2008, chega-se à conclusão de que ficou vedado o interrogatório do Réu Preso por meio de Carta Precatória, vez que o mesmo deve ser requisitado para comparecer ao juízo de origem para oitiva.

Por sua vez, o Réu Solto poderá ser citado e intimado para comparecer à audiência de interrogatório por meio de tal ato de cooperação judicial. Outrossim, o comparecimento do Réu Solto a juízo para promover sua auto defesa é faculdade, sendo indispensável, entretanto, a sua comunicação acerca da data designada para o interrogatório. Por derradeiro, impende dizer que o Réu Solto pode, no exercício do direito à liberdade da prova, requerer a sua oitiva por meio de Carta Precatória, devendo tal ato ser considerado processualmente válido.


*João Paulo Garrido Pimentel
Advogado. Mestre em Ciências Penais pela UCAM. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Estácio de Sá.